O BANHO EM ÁGUAS PROFUNDAS
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Entre os vários textos publicados pela Editora Olympia no livro “Titanic: um mar de histórias” figura o de Beatriz Salgado sobre as obras de arte que ainda hoje repousam nas águas geladas do Atlântico Norte. Confira:

Os passageiros da primeira classe do RMS Titanic levaram a bordo do navio da White Star Line diversas obras de arte, da joalheira à então nascente indústria automobilística como um Renault Type CB Coupe de Ville 1912, passando por uma das mais luxuosas encadernações de livros de todos os tempos: um  volume do Rubaáyyát de Omar Khayyam com capa de couro marroquino incrustada com ouro e marfim e adornada com mais de mil pedras preciosas e semipreciosas.

Poeta persa conhecido em português como Omar Caiam (1048 – 1131), o escritor narra nesta obra poética composta por quartetos (rubaiyat em árabe, que é resultante de um conjunto de versos em ruba’i que é uma estrofe de duas linhas com duas partes formando um quarteto) os fatos relacionados à existência humana, dos nascimentos e curiosidades que nos cercam à brevidade da vida e o envelhecimento como os vinhos que, quando estão maduros, se dissipam no ar em forma de suave aroma.

Mas se a poética persa e o carro francês pertencente ao sobrevivente William E. Carter, passageiro da primeira classe, entraram para o rol das curiosidades, é uma pintura a óleo o item mais valioso que naufragou nas águas geladas do Atlântico Norte no dia 15 de abril de 1912, privando a humanidade de voltar a apreciá-la.

La Circassienne au bain (A circassiana no banho), obra do francês Merry-Joseph Blondel, garantiu ao seu proprietário, o sueco sobrevivente da tragédia Mauritz Håkan Björnström-Steffansson, o ressarcimento em forma de indenização de mais de três milhões de dólares aos valores de 2023.

Pintor renascentista, com destaque em exposições no famoso salão do Louvre, um dos mais importantes museus do mundo, em Paris, na França, Blondel ficara encantado com a mística beleza alentada em sua época por relatos de viajantes das circassianas, mulheres originárias da Circássia, região do Cáucaso, hoje Federação Russa.  Todos os viajantes que conheceram esta região gelada falavam no retorno aos seus lares e nos famosos diários de viagem da alvura da pele das circassianas e dos olhos claros e cabelos dourados como o trigo que nasce nas campanas. Criava-se, assim, uma mística em torno destas desejadas mulheres, despertando curiosidade e poesia.

Blondel se deixou envolver por esta histórias e é uma bela mulher tomando banho o que retratou. A obra, devido ao naufrágio do Titanic, entrou para a história da arte e despertou curiosidade também para Blondel que não chegou, em seu tempo, a figurar entre os mais prestigiados artistas do renascimento. Este quadro, de fato, foi embarcado e tornou-se símbolo das obras de artes perdidas no naufrágio.

Em seu filme, Titanic, lançado em 1997, o diretor americano James Cameron comete diversos erros quanto às obras de arte presentes no navio. O maior deles lhe rendeu multa que pagou para a Sociedade dos Direitos dos Autores, sediada nos Estados Unidos e que protege obras de mais de 50 mil artistas e tem acordo nesta defesa com inúmeros museus a exemplo do MoMa de Nova York. É este museu o detentor do Picasso que o diretor quis levar para o seu fictício navio ainda que existam réplicas espalhadas pelo mundo, inclusive imagens reproduzidas em papel e muitas delas vendidas pelos próprios museus. Tal ousadia, irritou a sociedade que defende os direitos dos artistas mesmo quando suas obras estão em domínio público.

A bela circassiana de Blondel, de fato, tomou um banho para todo o sempre, só que nas águas profundas e geladas do Atlântico Norte ao contrário de obras de Picasso, Renoir e Monet que James Cameron também cinematograficamente afundou.

O quadro de Blondel, por ser extremamente perecível, nunca foi recuperado dos escombros do Titanic, mas ganhou cópias pela curiosidade que despertou.

Já joias, pratarias, relógios e outros objetos foram retiradas dos destroços e hoje integram exposições sobre o Titanic em mostras itinerantes e museus ao redor do mundo incluindo um pedaço do casco.

Mas é a bela circassiana o que desperta curiosidade, pois em torno da tragédia se desenrolou a responsabilidade da companhia de navegação e a luta de Mauritz Håkan Björnström-Steffansson pela indenização amplamente descrita nos maiores jornais do mundo. Foi isso também que contribuiu para que quadros de Blondel espantosamente subissem de preço e fossem disputados por renomadas galerias de arte e importantes museus ao redor do mundo.

Com o naufrágio do Titanic, os pedidos de reprodução do quadro para outros pintores cresceram enormemente, uma vez que Blondel havia falecido em 12 de junho de 1853 e, portanto, não poderia criar nova versão de sua mais famosa obra.

Para os supersticiosos, a bela circassiana tornou-se uma espécie de sereia que vive magicamente a 3,8 mil metros de profundidade em seu banho eterno nas águas do Atlântico Norte, guardiã daqueles que encontraram nas profundezas, como ela, o eterno descanso.

 

 

 

 

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